sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Pai Nosso...



– Pai Nosso que estais no céu...
– Diz isso como se esse Pai a quem você louva realmente estivesse no céu. – uma voz grave e altiva me interrompeu.
Sem entender de onde vinha aquela voz, fingi que não a estava ouvindo e tentei continuar minha oração.
– ...santificado seja o Vosso nome...
– Diz isso por que está na oração, ou você realmente deseja que seja assim até o final dos tempos?
– Por favor, não me interrompa – pedi ao anônimo oculto – Eu só quero terminar minha oração em paz!
– Seu Pai tem muitos nomes. Qual deles deve ser realmente santificado? Existem inúmeras formas de louvar Seu nome. E qual das crenças o faz corretamente? Se todos os nomes referem-se a um só Pai, por que tanta discórdia acerca disso? E a qual desses inúmeros nomes você ora?
Mais uma vez, tentei ignorar a voz...
– ...venha a nós, o Vosso Reino...
– Continua acreditando que Seu Pai resida num reino celeste? E que uma enorme distância os separa? A morada de Deus é o coração dos homens. Quando pede que Ele venha ao seu reino, onde quer realmente que Ele esteja?
– Dessa maneira não conseguirei terminar minha oração! Você quer, por favor, fazer silêncio para que eu possa concluí-la? – disse eu, já meio irritado.
– ...seja feita a Vossa Vontade, assim na Terra como no Céu...
– Seja sincero com Deus em suas orações! – ordenou a voz – Por que pede a ‘Vossa vontade’ se você mesmo não a pode realizar? Quando você pratica atos que te afastam de Seu Pai, está contrariando a ‘Vossa vontade’. Por que pede a Ele o que você na verdade não quer que se cumpra? Orar por orar e esperar daí alguma bênção que te salve, não te levará a lugar algum. Deus quer ouvir de sua boca o que realmente diz o seu coração.
– O que você sabe sobre a vontade de Deus?! – indaguei aos berros. Lembrei-me então que estava em uma Igreja e que não viera ali para me irritar, mas sim, para me confessar. – ...o pão nosso de cada dia, dá-nos hoje...
– Quando pede o pão, pede não só o pão, mas todos os bens materiais dos quais se julga necessitado. Como se seu conforto viesse de belíssimas mansões, carros do ano e fartos salários. O pão em que pensa ao orar, para você é um vasto banquete, enquanto há muitas pessoas passando fome e mesmo assim possuem mais desse ‘Pão’ do que você. Lembre-se sempre que Seu Pai é verbo! O pão que te dá a vida não é material. O pão da vida é a palavra de Deus! Só quando souber ouvi-La se sentirá realmente confortável. Tendo o seu ‘Pão’ de cada dia, tudo mais lhe será acrescentado!
Nesse momento, controlando-me para não me exaltar, fechei os olhos e resolvi terminar a oração com a voz do pensamento...
“...perdoai as nossas ofensas...” aguardei um minuto, contemplando o silencio da igreja, e continuei, ao perceber que não havia sido interrompido “...assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...”
– É mesmo capaz de perdoar todos aqueles que te ofendem de alguma maneira? – abri os olhos espantado, como podia aquela voz saber a momento exato em que eu havia acabado aquela frase da oração? – Como ousa pedir perdão a Deus pelos seus pecados, se você mesmo não consegue perdoar as agressões que te causam justa ou injustamente?
Ignorei completamente aquele estranho, e senti-me aliviado ao perceber que estava já nas últimas frases da oração...
– ... e não nos deixeis cair em tentações, mas, livrai-nos do mal...
– Assim como não há escuridão onde há a luz do sol, não há mal onde há Deus. Nenhuma tentação do mundo pode te fazer cair, se você sentir a presença de Deus. Seu Pai preenche, e onde Ele está, nada de mal há de ser temido.
Terminada a oração, levantei-me calmamente do assento, fiz o sinal da cruz e virei-me de costas ao altar, como se todo aquele momento eu estivesse ali desacompanhado e não houvesse escutado um único ruído.
– Há tantos anos não conversava comigo, que até mesmo esqueceu o som de minha voz? Até quando vai fingir que está desacompanhado?
Com isso, virei meu corpo novamente em sentido ao altar, ajoelhei-me ali mesmo no chão e, renovado, terminei corretamente minha oração, como nos velhos tempos...
– Amém!

sábado, 30 de outubro de 2010

O gato e o rato



  Era uma vez, um lindo e bem cuidado gato. Tinha uma bela e felpuda pelagem pelo corpo. Morava em uma casa em que todas as atenções eram voltadas para si. Assim sendo, tirando isso ou aquilo, o gato era perfeito. Na mesma casa, no entanto, certa vez apareceu um rato. O bichinho, vindo dos esgotos e do lixo, almejava um pouco de comida, apenas o suficiente para saciar-lhe e para cuidar de seus irmãos mais novos. O ratinho era mestre na arte de furtar alimentos e, sabendo disso, o gato propôs-lhe um trato: Jamais perseguiria o rato se esse, ao roubar comida, trouxesse-lhe uma pequena porção de cada alimento furtado. O gato sabia que a parceria ser-lhe-ia útil, uma vez que só podia alimentar-se de ração duas vezes ao dia. O ratinho, por sua vez, imaginava não precisar de tal acordo, uma vez que se considerava capaz de furtar alimento sem que o próprio gato percebesse, mas aceitou a proposta, pois, a mão que alimenta dois, certamente alimenta três. Assim pensou o ratinho.
Dessa forma, os anos passaram-se... De cada alimento furtado da casa, o rato levava uma porção ao belo gato que, em troca, oferecia-lhe proteção. Era a parceria perfeita! E, com o passar do tempo, aquilo se transformara numa grande e concreta amizade. O rato já não levava alimento a seus irmãos que, há muito, mudaram-se dali. Mas, não deixara de alimentar o gato um único dia sequer e via-se dominado por aquele total sentimento de amizade que lhe tomava o peito. O ratinho, com toda a sua força, amava o gato.
O gato, contudo, jamais manifestara um intenso sentimento em relação a seu amigo. Que logo, logo se sentira incompleto. Sabia que, à sua maneira, o gato o amava. Mas o rato se doava tanto por aquela relação, que carecia de um maior companheirismo. Exigia mais lealdade daquele por quem largara tudo para seguir. Mas o bichano já estava acostumado com toda aquela fidelidade oriunda do ratinho e tornara-se insensível aos sentimentos do pequeno animal.
Assim, certo dia, o rato decidiu não mais trazer alimento a seu velho amigo. Todos os dias saia, comia e voltava para deitar-se próximo ao gato. Desejava que o gato sentisse aquela distância que os estava separando, pois já estava cansado de sustentar sozinho aquele imenso laço. E desejava que, nesse dia, o gato se arrependesse e procurasse saber sobre seus sinceros sentimentos. O gato, entretanto, ao sentir seu afastamento, não agiu como o rato esperava.
Já não vendo utilidade naquela amizade, o bichano lembrou-se daquele velho trato em que ambos se entregaram. O gato prometera-lhe proteção enquanto o rato lhe trouxesse uma pequena porção de cada alimento furtado. E se o rato já não lhe trazia alimento...
Foi assim, que certo dia, quando seus donos o observavam, que o gato chamou-lhes a atenção indo ao pequeno buraco na parede em que o rato se escondia. Dessa maneira, seus donos armaram ratoeiras e espalharam por toda a casa. A perfídia estava armada! O gato não percebera, porém, que enquanto mostrava a toca a seus donos, o ratinho, desiludido, observava-o.
Então o pequeno animalzinho decidiu por sair de uma vez daquela casa e, se preciso, voltar ao lixo e aos esgotos. Mas, quando estava saindo, sentiu uma imensa pancada em suas costas. E ao tentar correr, percebeu que suas pernas já não lhe obedeciam. Caído ali de lado, o ratinho avistou o gato se aproximando e recebendo um cafuné de recompensa de seu dono que carregava uma vassoura na mão.
Sentindo a respiração faltar-lhe e as vistas se turvando, o ratinho ainda pôde ver seu grande amigo aproximar-se. Olhando-o nos olhos, o rato lembrou-se do quanto havia doado sua vida e, sem vergonha nenhuma, amado intensamente aquele gato. Sentiu na boca, naquele momento, o gosto amargo da ingratidão. Então, ouviu suas próprias batidas cardíacas ficando mais fracas. Nesse momento, arrependeu-se de não levar comida ao gato, pois, mesmo que esse não fosse capaz de amá-lo na mesma proporção, era seu melhor amigo e desejava mais que tudo estar a seu lado. As pálpebras, por fim, pareceram-lhe pesadas. E, de olhos fechados, sentiu pela última vez o toque de seu tão amado amigo, arrependido. E assim, perdoou-lhe concluindo, em sua total inocência, que quem mais cede, é o que mais tem. E o perdão, é claro, é uma virtude dos sábios.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

O Circo das Ideias Soltas



Era uma vez, um homem muito egoísta que reinava sobre um distante povoado. Fora acostumado a ter tudo na hora e da maneira que ele quisesse. Seu ouro comprava tudo, até mesmo as ideias mais brilhantes de seus súditos. Para ele, todos eram ignorantes. Apenas as suas vontades valiam a pena e somente suas opiniões contavam para o bem de todo seu reino. Dessa maneira, quem se opunha a suas ideias era teimoso, e não sabia conviver em harmonia com a sociedade sobre a qual reinava.
Certo dia, vindo de terras longínquas, apareceu em seu palácio um simples homem, dizendo ser dono de um maravilhoso circo e convidando o rei a estar presente em sua apresentação de estreia. O circo, dizia o homem, era mágico. O rei declarou que não havia magia na terra dos homens e, assim, considerou o dono do circo um dos mais puros ignorantes. No entanto, o homem circense era um homem sábio devido aos vários livros que já havia lido e aos lugares que já havia visitado. Descobriu, ao longo da vida, mistérios do mundo e aprendeu a respeitar o desconhecido e a pensar da perspectiva alheia. O que, para o rei, era simplesmente impossível.
No dia da apresentação, contudo, o rei fora ao circo, nomeado O Circo das Ideias Soltas, para mostrar a todos seus súditos que não estava enganado e que aquilo de magia era pura invenção de uma mente ignorante e sem escrúpulos para arranjar público. Na bilheteria, perguntaram então ao rei se ele realmente desejava entrar. Informaram-lhe que precisava pagar apenas uma moeda pelos seus pensamentos, mas, que para sair, era preciso pagar um preço alto. O rei, esnobe, afirmara com toda convicção que não existia preço que seu ouro não pudesse pagar e, assim, entrou.
Uma vez lá dentro, o rei impressionara-se com a singularidade daquele ambiente. O circo produzia, de alguma forma, grandes ilusões. Tudo em que se pensava saia voando por entre as paredes de lona do circo. Viu, então, quanto sofrimento infligia a seus súditos, por reprimir suas opiniões. Mas, o rei não viera ali para isso! O rei não precisava saber o que as pessoas pensavam a seu respeito! O rei era perfeito! E só ele conhecia a verdade sobre todas as coisas, pois só ele podia comprá-las. Sentindo-se ofendido, resolveu voltar a seu palácio. Para sair pela porta mágica de O Circo das ideias Soltas, no entanto, informou-lhe o dono do circo, seria preciso ter humildade e compreender o que levava cada uma daquelas pessoas a soltarem aquele tipo de pensamento. O rei, incapaz de analisar a situação da perspectiva de outra pessoa, ficara envolto em suas próprias ideias e não pudera sair.
Conta-se que gastou uma vida inteira para descobrir que um reino não se faz de Eu, mas sim, de Nós! Quando saiu do circo, os tempos já eram outros, em que as pessoas estavam bem mais felizes. Entendeu, com muito custo, que a ignorância não consistia em não aceitar suas ideias, e sim, em não conhecê-las. Ser marcante e ter opinião forte, é ter personalidade, aprendeu. Mas, não conseguir entender os sentimentos e pensamentos de outras pessoas é ser egoísta. Concluiu, além disso, que não se deve julgar a sabedoria de uma pessoa, nem mesmo pelas suas atitudes, pois, não se sabe ao certo baseadas em quais pensamentos elas foram tomadas, isto é, a não ser que você esteja dentro de O Circo das Ideias Soltas.

domingo, 1 de agosto de 2010

A ninfa e o jardineiro



 Era uma vez, um jardim encantado... Nele, vivia uma bela ninfa de lindos cabelos longos, pele branca e macia e cheiro de maracujá que passava os dias a cuidar de rosas de todas as cores. Estas, por sua vez, devido ao toque angelical daquela que as cultivava, tornaram-se o coração do jardim e, desse modo, o da própria ninfa.
A ninfa era uma criatura femininamente linda, no entanto, não conhecia o mundo além de seu próprio jardim, sendo assim, ingênua e pueril. Tamanha inocência fez com que a ninfa admirasse as pétalas e os perfumes oriundos das rosas sem nunca temer seus espinhos. E assim cresceu, até que, certo dia, vindo de terras longínquas, apareceu, em seu jardim encantado, um jardineiro.
O jardineiro era masculinamente duro, mas, ao ver a criatura perfeita residindo naquele jardim, apaixonou-se instantaneamente. Entretanto, com toda a malícia que alimentara dentro de si, ao longo dos anos, não sabia como lidar com aquele sentimento tão nobre que acabara de descobrir em seu peito fechado. A princípio, para impressionar a ninfa, o jardineiro esculpiu, nas árvores, lindas rosas e corações. A ninfa, então, encantada com seus dons, apaixonou-se pelo jardineiro e, a ele, e somente a ele, confiou suas lindas rosas.
As flores proporcionaram momentos de intensa felicidade ao jardineiro. Contudo, aquele homem não sabia se envolver com nada em que só havia bondade e não acreditava que aquelas cores e perfumes só o beneficiavam. Imaginava ter sido enfeitiçado pela bela ninfa e, confundindo a segurança daquele sentimento com uma prisão, resolveu fugir, amedrontado.
As rosas da ninfa já haviam se entrelaçado pelo corpo do jardineiro, tão amado. Assim, para sair dali e ir embora para sua terra, o homem pegara sua tesoura e começou a cortar os pés de rosas, enquanto a ninfa, desiludida e sem entender, chorava e pedia para que seu amor ficasse. Convicto de que tomava a atitude certa, o jardineiro partiu e, por um bom tempo, não se lembrara do jardim encantado.
Longos anos se passaram e, em sua terra, esculpiu novas árvores, cultivara outros jardins e conheceu diversos tipos de rosas. E todo aquele conhecimento, fez do jardineiro um homem mais amável. Conseguiu, por fim, entender que existe inocência na natureza, assim como maldade. E divergiu uma coisa da outra. Foi assim, que certo dia, lembrou-se do jardim encantado: a única perfeição verdadeira que acreditava ter conhecido em sua vida. A partir daí, tornou-se incapaz de tirar da cabeça a imagem daquela ninfa e, quando desta ela se fez ausente, fez presença no coração. E o jardineiro, arrependido, sentiu saudades... Saudades dos lindos cabelos longos, da pele branca e macia e do seu cheiro de maracujá... Saudades do seu jardim encantado, das cores e perfumes daquele lugar e, por fim, de todas as rosas que ali se encontravam.
Depois de tudo, então, o jardineiro voltou para o jardim encantado. Uma vez lá, encontrou tudo diferente... As rosas não eram as mesmas, os odores eram outros e as cores já não tão intensas. Procurando, o jardineiro encontrou a ninfa escondida atrás de rosas murchas que ele mesmo havia empilhado ao fugir. A ninfa então lhe explicou que, ao longo daqueles anos, tentara trazer outros jardineiros para seu jardim, mas que, assim como ele mesmo fizera, todos os outros despedaçaram suas rosas.
Conta-se, então, que o homem orou e pediu para que a ninfa não se fechasse à bondade, assim como ele fizera tanto tempo. Desejou que ela voltasse atrás e desse-lhe mais uma chance, pois só agora ele sabia tomar as atitudes necessárias para fazê-la feliz. Concluiu, finalmente, que não se deve brincar com as rosas de uma ninfa, uma vez que todo corte de sua tesoura ou arranhão dos espinhos nas flores existentes deixa cicatrizes.
Não se sabe ao certo, conta-se, se a ninfa foi capaz de cultivar novamente seu coração ou se passara o resto de sua vida mais temendo os espinhos que admirando a beleza de suas rosas.

quarta-feira, 24 de março de 2010

O Povoado das Sombras


Existiu um povoado, há alguns anos, em que as pessoas se envolveram em sombras. Tudo, para seus cidadãos, há muito havia perdido a razão de ser. Não compreendiam o significado para suas vidas e, assim sendo, acreditavam não existir nenhum. Sendo a humanidade, em suas opiniões, desprezível ao mundo.
O prefeito do povoado tentara inúmeras vezes reviver sua população, mas, após incontáveis derrotas, acabou sentindo a mesma pena pesando-lhe sobre as costas.
Certo dia, então, uma garotinha oriunda de umas das famílias mais humildes do povoado pediu-lhe permissão para abrir uma venda na praça central.
– E quem é que vai se interessar a comprar-lhe seus produtos? – o prefeito indagou à garotinha – Há muito as pessoas a nada se interessam. Com o tempo, minha querida, você irá se habituar e aceitará o destino que nos foi entregue.
A garotinha, com a ideia fixa na cabeça, insistiu defendendo-se com qual argumento garantia ao prefeito o renascimento de seus cidadãos. Assim sendo, a permissão foi concedida por um mês para que a garotinha não sofresse tanto com a decepção.
No outro dia, a garotinha, com a ajuda de alguns amigos, montou uma modesta e empoeirada barraca na praça central do povoado. Em cima de seu balcão, colocara potes cheios de areia carregando cada qual seu dizer. Em uma cartolina velha e rasgada, pendurada a cuja lona esburacada servia-lhe como teto, escrevera a seguinte frase: “Compre já seu dom!”.
Aquilo despertou tamanha curiosidade aos habitantes do povoado que esses, após tantos anos de exclusão saindo de suas casas apenas para conseguir o essencial, resolveram ir até a barraca da garotinha e perguntar-lhe de que estava brincando.
– Jamais brincaria com coisa tão séria! – respondera-lhes ela ­– O que tenho aqui são frascos trazidos por viajantes que partiram de cidades longínquas. Cada qual possui sua essência ímpar que concede um dom a quem de mim comprá-lo e banhar-se com sua poeira.
Um homem, sentindo piedade pela criança esperançosa, comprou-lhe um frasco a que estava amarrada uma etiqueta com a palavra “Poeta”. Mais tarde, após lembrar-se, através do frasco, o quanto as poesias haviam lhe interessado ao longo de sua vida, pegara pena e papel e escreveu as mais lindas poesias de que era capaz.
No dia seguinte, comunicou a veracidade das palavras daquela sábia garotinha e aconselhou todos os moradores do povoado a comprarem-lhe um dom. Dessa maneira, a garotinha recebera cada vez mais clientes. Ao final do mês, a garotinha havia faturado uma boa quantia e o povoado havia de fato se transformado.
O prefeito, a par das ações da menina, fora agradecer-lhe, mas, ao mesmo tempo, chamar-lhe a atenção por ter enganado todos os habitantes do povoado com simples amostras de areia. A menina, então, defendera-se usando de toda sua sinceridade:
– Prefeito, venho de família pobre e o que aprendi com a atitude dos homens e mulheres do povoado, é que para o pobre se dar bem na vida precisa ser extremamente criativo e jamais esquecer-se do que o torna diferente de todas as outras pessoas. Enquanto isso, os ricos, sendo o coração e o cérebro do povoado e tendo toda a educação que os é proporcionada, esquecem-se de seus dons. Pois, mais cedo ou mais tarde, deixam de lutar por aquilo que almejam, por ser fácil demais comprar todas as suas necessidades.
– Ainda assim, cara menina – censurou-lhe o prefeito – suas ações não foram justificadas! Você vendeu areia para os cidadãos dizendo ser dons que eles apenas não se lembravam de possuir.
– Prefeito, com todo respeito, pense bem na educação que nos é dada! – retrucara-lhe referindo-se às crianças – O poeta, o que fará de seu dom? Venderá suas poesias pelo preço que julgar justo! E o palhaço, que fará? Cobrará ingresso para cada sorriso proporcionado! O músico, consegue me dizer? Ah! Sim! Eu mesma o faço: colocará em liquidação todas suas músicas raras! Aprendi que, no mundo em que vivemos, todos nossos dons são permutados a cédulas e cifrões. E um talento, querido prefeito, é caro demais para não ser provado em papel moeda.

sexta-feira, 5 de março de 2010

A Boneca de Cera e o Soldado de Chumbo

Conta-se que, não muito distante, na prateleira de uma loja de artesanatos, vivia uma comunidade de bonecas feitas da mais pura cera. Todas idênticas umas às outras. Consideravam-se todas perfeitas. Sintetizadas da mais pura cera que conheciam. Mas, existia dentre elas uma boneca que se sentia completamente deslocada. Pois, ao contrário das outras, acreditava numa existência bem superior àquela única prateleira. E ansiava pelo dia em que, tirada dali, pudesse conhecer outro mundo de criaturas de cera ainda mais perfeita.
Havia, no entanto, um pouco acima, outra prateleira. Essa, cheia de soldados feitos do mais bruto chumbo. Todos idênticos uns aos outros. Todos aqueles duros soldados criticavam a existência fútil das bonecas, tão delicadas, de cera. Um em especial, porém, em quem fora posta uma dose maior de curiosidade na fabricação, resolveu analisar mais de perto todas aquelas curiosas bonecas e, assim, fora visitar sua prateleira. Lá, espantou-se com a igualdade daquelas bonecas.
Afastada das outras, aquela boneca que se sentia deslocada, ao ver a estranha criatura se aproximando, partira a indagar-lhe de que cera era ele produzido. O soldado, que, em meio a todos seus irmãos, jamais ouvira voz tão doce como aquela, apaixonou-se instantaneamente pela boneca que, para ele, pareceu diferente de todas as outras. Explicou-lhe que havia, um pouco acima, uma prateleira cheia de soldados de chumbo, como ele. A boneca, que sempre ouvira sons delicados partindo da boca de suas irmãs, apaixonou-se instantaneamente pelo soldado.
– Como, de mãos calejadas de um artesão viciado em sintetizar o mesmo modelo de bonecas, – perguntara-lhe o soldado – pudera nascer uma boneca tão diferente de todas as outras?
E, antes mesmo que ela pudesse responder, convidou-lhe para conhecer seu mundo, isto é, sua própria prateleira. A boneca aceitara o convite e, lá chegando, espantou-se com a igualdade de todos os soldados de chumbo.
– Como, de mãos cansadas de um velho artesão viciado em produzir soldados do mesmo modelo, – perguntara-lhe a boneca – pudera nascer um soldado tão diferente de todos os outros?
Acontece que, certo dia, o artesão apareceu dizendo que novos exemplares estavam para ser produzidos e que os antigos produtos seriam derretidos na estufa para que seus materiais fossem reaproveitados.
O soldado, não entendendo muito bem a que material o artesão se referia, fez uma promessa a sua boneca: “Ainda que novas bonecas chegassem, ele jamais a trocaria. Pois sua beleza não era a mesma beleza que poderia ser conferida em qualquer outra boneca. Era especial pela cera que fora colocada em seu interior. A mais bela e pura!”
A boneca, por sua vez, prometeu-lhe exatamente o mesmo, pois acreditava que sua diferença estava exatamente no chumbo de que fora feito seu coração.
Um dia, da prateleira dos soldados de chumbo, o soldado ouviu o artesão dizer que derreteria todas as bonecas na estufa. Desesperado, partiu em direção à prateleira das bonecas para resgatar sua amada. Lá chegando, não avistou nada além de poeira. Triste, o soldado partiu por conta própria à estufa, abriu-a e penetrou-a. Durante aqueles poucos segundos que se sucederam, o soldado pensou na breve e intensa vida que havia levado desde quando conhecera a boneca amada até que, por fim, derreteu-se completamente.
A boneca, que da sua prateleira também havia ouvido o artesão falar sobre derreter todas as bonecas, partira em busca de esconderijo nos braços de seu adorado soldado. No entanto, soube pelos seus irmãos, que o soldado de chumbo havia partido para a estufa para esquecer o amor perdido.
Dessa maneira, a boneca seguiu à estufa para salvar a vida de seu amado soldado. Uma vez frente à guilhotina de bonecos, ela avistou todas suas irmãs derretidas em frascos separados. Cada uma apresentava uma cor. Assim, compreendera que, apesar de parecerem todos iguais, não poderia dizer que as bonecas de cera e os soldados de chumbo o eram, pois, não sabia ao certo como o interior de cada um havia sido fabricado.
Pela única vez em toda sua breve vida, a boneca não se sentiu deslocada, pois entendeu que, mesmo sendo todas as criaturas do mundo feitas da mesma cera ou chumbo, cada um possui sua individualidade. Além disso, entendeu que não se deve subestimar o próximo, acreditando ser os pensamentos dele inferiores aos seus, pois, cada um é especial à sua maneira. E essa especialidade, não pode ser vista pelos olhos, se assim o coração não permitir.
A boneca, ao abrir a estufa, avistou seu soldado derretido e, assim como ele anteriormente fizera, fechou a porta e viu sua curta e intensa vida passar ante seus olhos. Conta-se, assim, que a boneca e o soldado uniram-se numa combinação perfeita de cera e chumbo. Com a certeza de que, para viver em união, é preciso sacrificar-se e doar ao outro o melhor de si. Os soldados, conhecendo toda a história dos dois amantes, e avistando a singularidade de cada boneca derretida em seu frasco, passaram a respeitar a raça dos indivíduos de cera com uma grande certeza: quem vê cara não vê coração.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O Arco da Amizade

Houve um tempo em que as sete cores matrizes resolveram se encontrar para discutir qual, dentre elas, era a mais bela para que esta, até o fim dos tempos, presidisse todas as cores em um trono celeste. No entanto, um alvoroço incontrolável não permitira que chegassem a um consenso. Cada cor desejava ser a mais vistosa e importante e, uma a uma, foram encontrando defeitos em suas irmãs.

– Vermelho – pestanejou a Laranjado – é a cor do fogo que se alastra pelas coisas e queima o mundo. É destruição e jamais poderia ser eleita a mais bela!

– Olhe para si mesma, Laranjado! – ordenou Amarelo – Que seria do fogo na ausência de seus tons? Veja! Olhando daqui até parece ser laranjado o fogo que se mantém aceso no Sol que queima a pele, causa doenças e seca rios e terras.

– Que lições são essas, Amarelo? – surgira a Verde a questionar – Acaso existe doença mais terrível que a causada pela sua cor? O homem que destrói a terra, trai, inveja e mata seus próprios amigos nada mais quer que desfrutar e esbanjar de sua cor, presente no ouro.

– Quem é, oh! Verde! Para pregar-nos sermões? – Veio o Azul a debochar-lhe – De que nos vale o verde quando tudo em que se encontra nada mais quer do que madurar? A sua é a cor provisória. É nada mais que a imperfeição de tudo o que ainda não está pronto para ser colhido!

– Azul, Azul... – interveio Anil – Porque é sempre tão frio? Jamais votarei em você, para que presida o céu. A imensidão dos oceanos em que está presente assusta a todos nós e, além disso, impossibilita-nos de compreendê-lo. Quem, em sã consciência, poderá nos dizer o que se esconde por debaixo de suas águas?

– Anil, – chamou-lhe Violeta – quem pensa ser? Nada mais é que uma cópia barata da Azul. Você a inveja! Além do mais, a incerteza que encontro no oceano, nada se compara à que encontro no céu! Quem de nós poderá esclarecer os mistérios que o envolvem?

– Onde está Violeta? – indagou a Vermelho – Onde se encontra sua cor em toda a vastidão da natureza? Quem foi o louco que a elegeu a cor matriz?

E assim, a discussão perdurou-se por vários dias. Até que Branco, passando por ali, escutou o alvoroço e dispôs-se como juíza da discussão. Ouviu a versão de cada cor e, com isso, reparou que as cores mais se atacavam com defeitos alheios que se defendiam com características próprias. Sendo assim, aconselhou cada uma a procurar a melhor qualidade de uma de suas irmãs.

– É verdade que o fogo arde e queima a vida, – Laranjado deu início – no entanto, Vermelho é cor da paixão, que aquece a alma, assim como o fogo aquece o corpo de quem sofre pelo frio. Vermelho é sim a cor mais bela!

– Dessa forma, Laranjado, – prosseguiu Amarelo – você se elege ao trono, pois, como disse antes, o Sol também tem sua cor! Você aquece os corpos, deixa-os fortes e vitaminados, é a cor da energia. Além do mais, no verde das árvores que dão frutos, muitas vezes sua cor é destaque. Laranjado é sim a cor mais bela!

– Jamais deixarei passar por despercebido a riqueza que sua cor promove, Amarelo! – exclamou Verde – Mesmo com seu ouro, o que me impressiona são outros tesouros. É a cor de todas as riquezas. Ou esquece-se de que no céu não há riqueza mais reluzente que o brilho das estrelas? Amarelo é sim a cor mais bela!

– No entanto, querida Verde, – reconheceu Azul – olhe mais para perto! Olhe na terra e tente me responder: existe cor mais abundante onde nos encontramos que não a sua? É a cor da esperança. Verde é sim a cor mais bela!

– Eu o digo, – respondeu-lhe Anil – oh! Grandioso Azul! Existe sim, na terra, imensidão maior. Mas me questiono se há, no Universo, uma que se equipare à sua própria grandeza. A abundância de suas águas é o que sustenta a vida, à qual todos nós impregnamo-nos. É amizade. Azul é sim a cor mais bela!

– No Universo, Anil? – questionou Violeta – Oh! Sim! Olhe para as alturas! O manto gigante que nos cerca e cobre possui a sua cor. É saúde! Anil é sim a cor mais bela!

– Perdoa-me, Violeta – implorou Vermelho – pelo que anteriormente havia dito a seu respeito. É verdade que é misteriosa e esconde-se na natureza, entretanto, olhe o crepúsculo e tente me dizer qual cor exerce maior fascínio sobre os homens que você. É magia. Violeta é sim a cor mais bela!

As sete cores fizeram, então, um pacto e decidiram reinar juntas até o fim dos tempos. Às vezes, quando se faz necessário, aparecem unidas no céu para lembrar a humanidade de que cada ser possui em si luz e treva e que ninguém é completamente bom ou mal. Aprenderam que o selo da amizade eterna é saber enxergar, no próximo, o que de melhor ele tem a oferecer.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

O Espelho do Futuro

Conta-se que há alguns anos, um garoto nascera predestinado a ter êxito em tudo a que propusesse realizar. Tamanho sucesso, diziam seus amigos, devia-se a certo dom divino. No entanto, seu irmão acreditava que tudo o que lhe acontecia era obra de um espelho herdado de seu pai que produzia como reflexo o futuro de quem a sua frente se postasse. Assim sendo, seu irmão, a quem a vida sempre exigira mais, passou a invejar o espelho e todos os benefícios que ele proporcionava a seu único familiar.

“Se aquele espelho fosse meu”, pensava e dizia o irmão, “conseguiria tudo o que um homem pode desejar.”

O garoto, então, resolveu presentear seu irmão com o espelho, para provar-lhe que conhecer seu futuro não poderia lhe garantir vitórias incondicionais em suas ações.

Seu irmão, assim, frente ao espelho, focalizara na mente a mulher a quem dedicava seu amor. Viu seu reflexo correr no tempo e jogar tudo para o alto para ficar com sua amada, ao longo de uma vida prazerosa e cheia de amor. A certo ponto de sua vida, no entanto, percebeu pelo espelho que passaria grandes dificuldades financeiras e não daria a seus filhos e mulher tudo o que almejava oferecer-lhes. E viu, através dos olhos de seu próprio reflexo, a tristeza que aquilo lhe causava.

Descartando aquela previsão, mentalizou fortemente uma vida de trabalho e dedicação. Logo, viu no espelho o reflexo de seu possível futuro. Viu-se cheio de riquezas, carros do ano, trabalhos bem sucedidos e mulheres brigando para lhe fazer companhia. Deslumbrou-se com aquela visão. E, enquanto olhava, percebeu o egoísmo nos olhos de seu reflexo. A bebida já não lhe saciava, a comida já não lhe enchia e as mulheres já não o satisfaziam.

Infeliz com seu possível futuro, imaginou-se levando a vida sem grandes decisões. Viu-se, assim, como uma pessoa feliz com o pouco que tem. Mas, enquanto se olhava, percebeu o vazio nos olhos de seu próprio reflexo. Aquele seu possível futuro levava a vida de maneira irresponsável e não lutava por nada. Apenas deixava que a própria vida lhe trouxesse as oportunidades. Pelo reflexo, logo se via que não eram muitas e, as poucas, não as melhores.

Dessa forma, o irmão do verdadeiro dono do espelho lhe devolveu o artefato mágico e disse-lhe, que mesmo que o segredo para seu sucesso consistisse na previsão de seu futuro, ainda assim ele possuía um dom ímpar para corrigi-lo. O dono do espelho, naquele dia, revelou a seu irmão o que lhe garantia êxito em tudo o que colocava suas mãos. O mistério era o meio termo. E nunca se deixar levar por um vício.

“A sua vida”, disse ele, “será exatamente os efeitos de suas escolhas e atos. Todos temos, mais cedo ou mais tarde, aquilo que merecemos. Isso dá-me a segurança para tomar partido, e não um espelho que reflete o futuro. Pois o futuro, que só a Deus pertence, é, na realidade, nada mais do que as consequências de tudo o que eu faço.”